Está-se bem aqui. Desliguei o ar condicionado, e acendi a luz. Pareceu-me tanto estar onde não estou. Mas está-se bem aqui. A cidade calou-se, para me deixar ficar. Não há quase nenhum barulho na rua. Vou à janela, e só vejo as luzes. As luzes levam-me para dentro delas, numa viagem curta, que não dura nem cinco segundos. Mas para mim, dura muito. Dura muito mais. Os carros recolheram há algum tempo, e agora até as pessoas que saíram para passear já estão a voltar a casa. A cidade está a ficar deserta de pessoas, e cheia de luzes. À noite, esta cidade é feita de luzes. As pessoas recolhem, voltam ao sítio de onde saíram, ou de onde nunca deveriam ter saído. As pessoas voltam para casa, para a zona de conforto que já ninguém dispensa, ninguém vive. Eu estou aqui, e se for à janela, já não vejo ninguém. Mas tu podes vir, se quiseres. Prometo que se tocares à campainha, eu vou ver quem é e não te deixo muito tempo à espera. Talvez só algum. Importas-te de esperar? Importas-te? Se te importares, não venhas. Não me vai apetecer ir logo abrir a porta. Há muitas coisas que te quero dizer, e ainda não consigo. Conseguiste sempre tudo? Para além de me abrires o coração e teres entrado para cá de um modo tão forte que agora nunca consigo que saias, nem por segundos, não acredito que tenhas conseguido sempre fazer as coisas assim tão fáceis. És forte como eu, e fraco como eu. És diferente, para mim, porque te amo assim, mas aos olhos dos mundos és mais um. E é triste, mas és. Há muitas coisas que ainda não te sei dizer, de coisas que não resolvemos há uns tempos, preferimos passar por cima sem querer saber. E fizemos mal. Achei que as fosse esquecer, mas afinal hoje ainda me lembro. Lembro-me dos mas, que me dizias a seguir a dizeres que me amavas. A tudo o que aconteceu e eu deixei que mandasses para trás das costas, porque me dizias sempre: Amanhã é um novo dia, e eu quero estar cá contigo, por isso não faças isto. Deixa-me ficar. E eu deixei. Deixei-te que entrasses, sem tocares à campainha. Abri-te logo a porta, não te fiz esperar. Temos muitas coisas para resolver, sabes? E eu não quero passar outra vez por cima delas, só porque é mais fácil e a ti te convém. As coisas que temos para resolver não te dizem só respeito a ti, não és só tu que contas, tens que pensar em mim também. Se me amas, tens que pensar em mim também. E eu sei que amas. Porque este amor não é de agora, nem de ontem, é de há muito tempo. É um amor de muitas coisas resolvidas, e de outras por resolver. Tem que ser assim, porque o nosso amor não é um amor perfeito, mas é o nosso e temos que o agarrar, que o prender bem fundo nos nossos dois corações. Não duvido que, em breve, serão apenas um. Vê se percebes quando te digo que quero resolver tudo para ficar melhor contigo. Estes segredos, estas coisas mal resolvidas, só nos fazem mal. Deixam-nos as tosses, as discussões, o medo de dizer, os gritos que nem toda a gente ouve, a mágoa que fica sempre em algo que não se resolve. Cais, e levantas-te. Resolves o que te aconteceu, sais do chão para voltares ao lugar inicial, mas nada te garante que não voltarás a cair. Precisas de assentar bem os pés no chão. Não podes deixar que volte a acontecer tudo da mesma maneira, porque senão vais voltar a cair. Agora, o poder de resolver é nosso. Por isso, vem. Toca à campainha e, mesmo que eu demore a abrir, espera. Espera por mim. Não te vás logo embora. Espera que eu vá ao teu encontro, te abra a porta e te beije a bochecha. Quero deitar-me no sofá, com a minha cabeça sobre as tuas pernas. Quero que me faças festinhas no cabelo, e quero resolver tudo. Quero que sejamos nós, só nós, sempre nós, daqui para a frente. Hoje, não esperes mais de mim, mas espera por mim. Posso demorar, mas eu vou abrir-te a porta e deixar-te entrar.